quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Gritando a plenos pulmões no meio da selva


Para quem ainda não viu a mini-série da National Geographic “Going Ape”, recomendo vivamente a perder umas horas. O programa de entretenimento, distante do clássico documentário da selva, no entanto a milhas do da futilidade dos actuais shows sobre fugas da prisão, maníacos da sobrevivência e outras tantas categorias que mancharam a reputação deste canal, juntamente com a grelha dos canais Discovery (que contempla o TLC), retracta as semelhanças entre o Homem moderno e os nossos primos afastados, símios como o bonobo e o chimpanzé. A conclusão a que eu cheguei é que, apesar de mais bem vestida e subtil, a nossa espécie continua com os hábitos de antigamente, uma necessidade visceral de se enquadrar na sociedade, de se afirmar e, se possível, ser dominante.

E depois existem aqueles que atiram a subtileza toda pela janela fora.

Quem ouve música alta (não como os idosos a ver telenovelas mas como um bar cujo dono quer que as pessoas se vão embora) com as janelas abertas no último dia de Outubro, nitidamente não tem problemas auditivos nem obtém prazer de ter os tímpanos a sangrar. O objectivo é claramente mostrar a toda a praceta que “eu existo, eu estou aqui e têm todos que me aturar”, um grito de guerra para quem não tem outra forma de afirmação. Mas , ao contrário dos portugueses de antigamente (retratados nas histórias dos mais velhos, eu nunca cheguei a conhecê-los), que quando a pobreza bateu à porta não foram todos assaltar bancos ou velhinhas, quando a vida está tão mal ou tão bem que existe uma necessidade de exercer dominância nos demais, uns quantos encontram formas de libertar essa energia abrindo a janela antes das 9 da manhã e metendo a música mais monocórdica e aborrecida que encontraram no seu iphone (porque hoje em dia toda a gente tem iphones, começo a desconfiar que os distribuem na fila da segurança social). Outros, uma casta já praticamente desconhecida da linha de Sintra, cometem as atrocidades pós-modernas como subir na vida, subindo na carreira ou crescendo um negócio próprio e conseguindo famílias estáveis e saudáveis onde as crianças são obrigadas a manter a música baixa.

(foto "emprestada" de http://adamsapple15.blogspot.pt/2009_12_01_archive.html )

domingo, 8 de setembro de 2013

10 medidas “fassistas” para combater a obesidade


1. As portas do burger king e macdonalds são mais estreitas. Os terminais multibanco dos respectivos drive-thru têm acoplado um medidor de impedância que só permite efectuar pagamentos abaixo de um limiar de gordura corporal.

2. As barras que impedem a passagem de carrinhos de bebé nas escadas rolantes são alongadas até à altura do tórax. Quem não passa confortavelmente entre elas é obrigado a usar as escadas estáticas.

3. As pessoas apanhadas a usar “suplementos” depuradores e desintoxicantes são dirigidas até à esquadra mais próxima onde são obrigadas a consumir uma caixa de 50 filtros de café. Têm a opção de os ferver em água e acompanhar com bolachas de fibra sem sal (que basicamente é alpista).

4. Conta poupança compulsiva “O meu primeiro bypass coronário”.

5. Taxa de impacto gravitacional.

6. Todas as pessoas obesas são obrigadas a usar suspensórios.

7. Os empregados de buffets são pessoas que frequentam um ginásio há 3 anos regularmente, com um índice de massa gorda inferior a 10% e que só falam disso.

8. O acesso ao balcão dos gelados nos hipermercados faz-se por uma passadeira rolante em desnível.

9. As pizarias só têm take-away. Se o cliente demorar a ir buscar a piza, paga o dobro e só leva uma salada de frango.

10. Maratona anual para obesos. Realiza-se no campo, apenas em dias de chuva, os últimos 10% a chegar são obrigados a repetir no dia seguinte (onde se aplica novamente a regra dos 10%).

sábado, 27 de julho de 2013

O padre que deixou de acreditar em Deus


Não há nada de científico na fé, quero dizer, ninguém tem fé em Deus (maiúscula por respeito aos amigos católicos) porque leram uma revisão sistemática ou uma meta-análise de estudos científicos publicadas em revistas conceituadas. Se um padre deixa de acreditar em Deus, apesar de caso grave e das possíveis consequências laborais, não podemos inferir que não volte a crer. Num aperto até um ateu ferrenho contempla a opção de rezar, mesmo que a ponha de lado no minuto seguinte.

O caso não é tão simples quando não falamos de uma religião mas numa corrente filosófica. Um homem crê numa certa linha de pensamento dada uma certa lógica, que quando quebrada não tem forma de se reconstruir. Se forem apresentados dados suficientemente convincentes e mais coerentes que os vigentes, pressupondo uma mentalidade que ainda não cristalizou, a probabilidade é baixa que o prevaricador volte ao mesmo caminho depois de o abandonar.

Exagere-se o caso e imagine-se que Freud era ressuscitado e deixava de acreditar em tudo o que disse anteriormente. Como faria ele para se divorciar da psicanálise? O que faria ele com os milhares de seguidores no mundo? O mais provável é que estes o chamassem de maluco, nem todas as mentes estão abertas à mudança, mesmo aquelas que o estão não trilharam o mesmo caminho que ele e como tal não tiveram tempo de atingir as mesmas conclusões ou de assimilá-las correctamente. Como se sentiria Freud no seu círculo de amigos psicanalistas? Um inimigo? Ostracizado?

Restam duas opções: a fraude ou a honestidade. Custa a crer que muitos padres e Freuds tivessem a coragem e sacrifício para virar as costas a tudo o que construíram.

Felizmente eu não sou Freud, não sou padre, não vou desapontar milhares de psicanalistas e não passei a ser satânico ou a acreditar na teoria dos humores.

Estou só à procura das palavras certas para a minha carta de meia despedida.

domingo, 19 de maio de 2013

As aventuras do gajo da flor 3

O gajo da flor dirigia-se agora determinado a chegar ao homem das lantejoulas sem novas pausas para ingerir omeletes.

Atravessava presentemente um campo verdejante entre o porto e a cidade, discretamente livre de civilização, apenas uma casa de colmo aqui e ali, um aldeão que o cruzava na estrada de terra batida a intervalos de dez minutos e o esporádico pato chinês. Todo este mundo lhe parecia encantado, como a vida da noite parece mágica ao universitário, um misto de cores vivas e bebidas transparentes. O pensamento fê-lo considerar que devia ter um alguidar à mão, não fosse o caso de todo o entusiasmo lhe dar também a volta ao estômago.

Notoriamente o capitão Estrela tinha a mesma noção de distâncias como um hamburger mal passado ou um treinador de gordos. O suor lavava os poros do gajo da flor como molho de café em bifinhos de lombo, o sol da planície queimava-lhe a pele como entremeada grelhada ao ar livre, cada vez mais o seu corpo se queixava da jornada, o cérebro pregando-lhe partidas, todas envolvendo comida. Por momentos pensou-se um ovo kinder grand surpresa mas o seu raciocínio lógico relembrou-o que nunca na vida atingiria preços tão elevados no mercado. Provavelmente era antes um ovo de páscoa regina, sem brinquedo no meio, ou de uma daquelas marcas que se oferecem às crianças da família que não nos são propriamente chegadas, mais baratos e de espessura mais humilde.

Mas, finalmente, avistava a cidade, com um obelisco erguendo-se e rompendo o céu, provavelmente a torre da igreja ou um silo de gramíneas. A visão do seu destino deu-lhe o alento necessário para terminar a caminhada, sendo no entanto bruscamente interrompido por uma personagem estranha que o interpelou.

"Viva! Posso conhecer-te?", disse o rapaz. O gajo da flor atentou na figura, varrendo-a de alto a baixo, como um professor catedrático a avaliar a carne fresca nas aulas de primeiro ano. Era um provável adolescente, na casa dos 16 anos, de estatura raquítica. Tinha cabelos curtos, escuros como uma noite sem lua e a expressão de inocência e uma certa ignorância. Vestia roupas simples, algo limpas e discretas. Os seus sapatos demonstravam um uso franco, de quem não tem medo de se fazer à estrada a pé em vez de levar o carro para ir à padaria. E não tinha braços.

"Podes conhecer-me, rapaz, mas antes diz-me quem és! Eu sou o gajo da flor e venho de uma terra distante!"

"Eu sou o aprendiz de pedreiro, os meus amigos chamam-me Rolo."

"Rolo? Porquê Rolo?"

"Não é óbvio? Adiante, a vida de pedreiro está a sufocar-me, é um desconsolo. A maioria das pessoas apenas vê o glamour da nossa profissão, de certa forma foi isso que me atraiu. Foram as festas, conhecer as pessoas, fazer calçadas que destroem os pés das mulheres enquanto elas exclamam por mais, foi a fama que me trouxe a este caminho. Mas o que ninguém vê, por detrás dos bastidores, é que as pedras não vêm já talhadas, é preciso trabalho, empenho, amor e carinho para as moldar à nossa imagem" - Rolo parou para limpar as lágrimas que se acumulavam e de seguida continuou - "as mulheres olham para mim como se fosse capaz de lhes construir um T2 nas nuvens... mas nenhuma quer talhar o espaço vazio no meu coração."

O gajo da flor interrompeu-o.

"Rolo, isso fui muito panasca, tens a certeza que não gostam de ti porque não tens braços?"

"Não tenho braços, eu? Ridículo! O problema é a insensibilidade das mulheres dos dias de hoje! Só querem pavimentos isto, pavimentos aquilo, são consumistas e nunca pensam em estimar a vida! A vida é a essência da Humanidade, as obras só têm valor se estivermos vivos! Eu sei que no mundo há uma mulher que vai olhar para mim e ver para lá do meu calcário, que vai ver a minha alma..."

"Continua assim e a única mulher que vai ver a tua alma é a empregada do cangalheiro. Continuo a achar que o teu problema é não teres braços mas essa conversa de sentimentos não pode ajudar muito. Mas afinal o que queres tu? Estás com rodeios e não me dizes!" O tom do gajo da flor tornava-se mais grave enquanto ele acelerava o passo, o jorrar de sentimentos do aprendiz de pedreiro não fazia sentido nenhum.

Rolo aclarou a garganta. "Quero ir à aventura contigo, combater dragões, abraçar donzelas, aprender danças de salão!"

"Mas tu vais abraçar donzelas sem braços? Queres combater dragões sem uma mão para segurar a espada? Estás a pensar que vais metê-la entre os dedos do pé enquanto te equilibras na cabeça? Eu nunca matei um dragão mas duvido que seja o mesmo que fazer um postal de natal!"

"Meu amigo homem da flor, tu também tens defeitos! Eu bem vejo que os teus olhos andam semi-cerrados, noto que escondes tenebrosos segredos. Esses apêndices que te pendem dos ombros são convenções impostas à humanidade por ditadores que defendem um ideal físico inatingível, que acham que se não somos iguais a eles então somos defeituosos, inaptos para certas tarefas, que não podemos escalar os cumes mais altos ou agarrar os desafios mais árduos. Não consegues ver para lá do meu corpo? Não consegues ver o meu valor, a minha coragem, a ânsia de aventura?"

"Consigo ver isso tudo, o meu problema é que não consigas agarrar nos sacos de compras quando formos ao mercado. Façamos um acordo, Rolo. Orienta-me pela cidade e podes andar comigo. Não te ajudarei mais do que o que faria a um outro companheiro, se a construção social que é a tua falta de braços se tornar um transtorno, terás que superá-la sozinho, concordas?"

Rolo consentiu. A restante viagem fez-se em silêncio, as palavras agressivas ainda pendiam no ambiente. Não obstante, apreciou-se a paz do momento até à cidade e, antes de esta ser penetrada, o grupo já se havia comprometido em manter as boas maneiras enquanto os seus caminhos estivessem unidos.

Nos limites da cidade Rolo não prestou atenção ao chão e tropeçou na linha tracejada gigante, melhor visível em vista aérea do mapa. Caído e sem braços para se levantar, o gajo da flor fez jus à promessa e deixou-o ficar a observar detalhadamente a sua obra de pavimento, continuando a viagem até à praça sozinho.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

As aventuras do gajo da flor 2


As roupas do gajo da flor enxugaram depressa no sol do porto, agora dava-se por contente por ter trazido calças de ganga em vez de ter roubado as calças de yoga da irmã. A durabilidade do tecido em condições adversas jogaria a seu favor no longo prazo, mesmo baixando o appeal perante a comunidade homossexual. Antes odiado e vestido do que amado mas com a genitália a esfregar-se contra as intempéries.

Com calma dirigiu-se à frente da roulotte das omeletes. Era uma roulotte branca, antiga, enferrujada prematuramente pela maresia e a diarreia das gaivotas. Através da janelinha das vendas transpirava um odor a omeletes acabadas de fazer e colónia barata. O gajo inclinou-se no balcão na tentativa de encontrar quem o servisse. Repentinamente saltou na frente dele um homem ruivo, de sorriso psicadélico. O seu cumprimento levou o gajo da flor a saltar para trás e com o susto acabou por cair.

“Heeeeey!”, cumprimentou o vendedor e continuou “Posso ajudá-lo?”

“Oh… sim, sim, claro. Queria uma omelete com fiambre.”

O vendedor acenou e gritou para o fundo da roulotte, “olha a omelete!”. Seguidamente deslocou-se para o lado e iniciou o longo e penoso processo de bater os ovos, que por anos de experiência e mãos calejadas, transformou numa harmoniosa sinfonia clássica, se tocada por garfos a bater em taças de porcelana.

“Eu sou o Pedro, faço omeletes para os marinheiros há 20 anos! Sabe, quem me inspirou a seguir a cozinha fina foi o Jamie Oliver, cresci com os programas da Filipa Vacondeus mas depois de comprar todos os trens de cozinha da IdeiaCasa senti-me perdido. Foi o Jamie Oliver, na sua eterna sabedoria, que me pegou com as suas mãos e deu rumo à minha vida.”

Sentindo-se constrangido pelo desembaraço do chef Pedro em contar pormenores íntimos da sua vida mas sem interesse em divulgar a dele, o gajo da flor enveredou pelo caminho inquisitivo.

“Mas conheceu o Jamie Oliver?”

“Não, não! Uma vez cruzei-me com ele na rua, ele pegou-me no punho a pensar que eu era um rolo de carne. Penso que estava a fazer uma campanha sobre comida de cantina e acabou por me mandar embora… mas houve química gastronómica. Desde então que me dedico à minha roulotte, na esperança que um dia possa dizer que no mundo ninguém sofre por falta de omeletes e que eu fiz a minha parte. É uma guerra, sabe?” Findo o trabalho de obter a mistura homogénea perfeita, tratou de criar uma sensível chama debaixo da frigideira. Todo o processo parecia ao gajo da flor uma dança, executada de forma graciosa e delicada, uma autêntica cerimónia real. Os ovos começaram a gemer sobre o calor e Pedro preencheu o seu topo líquido com pedaços finíssimos de fiambre, cortados sensivelmente com a unha do seu dedo mindinho. No ar sentiu-se a sombra e bênção do método de Jamie Oliver, o carinho manual na cozinha contra a tirania do uso de instrumentação estéril e fria. Com a mesma destreza dobrou o colóide, que se moldava como barro nas mãos de um artista.

“Não fazia ideia… há anos que como omeletes mas de onde venho nós tomamo-las como algo certo na vida. Nunca pensei que em outras partes do mundo houvesse tanta falta delas. Claro que não tenho a experiência do senhor Pedro, nem tampouco era viajado até hoje.”

“Ah sim? De onde é?”

O gajo da flor sentiu-se constrangido pela pergunta. Estava no início da sua aventura e não queria cometer erros deixando transparecer informação que pudesse ser usada contra ele. A sua testa enrugou e respondeu, “não sou daqui mas no dia em que não houver falta de omeletes levo-o à minha terra para casar com uma irmã minha! Mas diga lá, com tantos problemas com esta iguaria, certamente que há comissões a tratar do assunto, não?”

Pedro riu-se, colocando as mãos nas extremidades globosas do seu abdómen. “Sim, certamente que há! Temos encontros e palestras bianualmente! Mas olhe, vou terminar a sua refeição antes que fique fria.”

Com isto, o cozinheiro retirou uma faca da cintura com que descolou a omelete da frigideira. Cautelosamente colocou o polegar no topo desta e com a pinça improvisada passou o real maná para um par de toalhetes de esplanada que rapidamente saturaram com o óleo, o mais rico manjar dos deuses. Trocou-se comida por moedas de ouro e o gajo da flor despediu-se cordialmente.

“Ainda volto cá para experimentar com cogumelos!”

“Volte sempre! Da próxima arranjo-lhe uns panfletos!”

Entretido com a única comida que tinha visto a manhã toda, o gajo da flor tomou a direcção que o capitão Estrela lhe tinha indicado. Um pensamento não lhe saia da cabeça no entanto, “eu não vi óleo nenhum na frigideira”.

sábado, 11 de maio de 2013

As aventuras do gajo da flor 1

Seria por volta do meio dia quando o barquinho do gajo da flor chegou ao porto de Belruf. O céu brilhava e as gaivotas circundavam os pescadores, untados de vísceras de fauna marinha. A paisagem olfativa complicava-se sobretudo pela total ausência de rinite, resultado da instilação de quantidades indústriais de água salgada pelas narinas nos últimos dias. Este não era o cenário que o gajo da flor esperava que o cumprimentasse no início das suas aventuras, no entanto, em território totalmente desconhecido, necessitava de obter alguma informação, um mapa, um pão de ló, algo que lhe desse algum sentido de orientação e um objectivo. Esse mesmo pensamento relembrou-lhe as advertências dos irmãos para não ir à aventura sem um objectivo definido, sem uma donzela para salvar ou um caminho bidimensional no qual tem que se terminar no fundo direito do ecrã. Com uma lágrima no olho e saudades de caril, o gajo da flor ajoelhou-se nas tábuas molhadas do porto enquanto gemia.

Rapidamente a posição chamou a atenção do capitão de um navio, que se dirigiu a ele.

"Hey, tu, tens ar de marinheiro mas não tens espinhas no cabelo ou pulseiras de guelras. Primeiro dia de trabalho?", disse o capitão numa voz não surpreendentemente grosseira. O capitão tinha um chapéu com uma pena branca, roupas demasiado douradas para ser levado a sério fora de uma discoteca de quarentões, um sabre que reluzia menos que a casaca e pele facial tão seca e espessada pelo sol que se fossem os pés de uma mulher, ela faltaria ao trabalho para ir à pedicure.

O gajo da flor fungou, conteve o desespero e retorquiu, "não, eu cheguei hoje num barquinho, vim a Belruf à procura de aventura. Eu sou o gajo da flor, quem é o senhor?". O gajo da flor não conseguiu impedir o pensamento de que o capitão havia de ser ou um chulo ou polícia sinaleiro.

"Sou o capitão Estrela, da nobre embarcação Engracia! Se vieste à procura de aventura, penso que tenho uma boa proposta para ti. Diz-me, já tens estadia e alojamento? As agências de viagem normalmente tratam disso mas, pelo aspecto do teu barquinho, parece-me que decidiste vir à aventura sem tomares as precauções necessárias"

O gajo da flor levantou-se finalmente mas permanecendo a olhar para as tábuas. "Tem razão capitão, ainda fui à Abreu mas o pacote para Belruf era caro e só tinha meia estadia. Já que vinha à aventura pensei que isso pudesse contemplar arranjar alojamento... só quando cheguei é que descobri quanto me apetecia uma omelete, razão do meu desespero. Qual é a sua proposta, capitão Estrela?"

O capitão riu-se entre dentes e disse "Em primeiro lugar não é Belruf, tens que largar esse sotaque idiota antes que te comecem a atirar com medalhões de pescada. Diz-se Belruf, percebes? Adiante, como já deves ter reparado, razão pela qual não deixas de olhar para o chão, está a faltar-me uma lantejoula no casaco. Ele está absolutamente ridículo e tenho inclusivamente evitado lidar com a minha tripulação, isto é mais que causa para um motim! O casaco foi uma prenda de um amigo de longa data que vive mesmo aqui na freguesia, a dois quilómetros para norte, ao pé da praça central. Eu falaria directamente com ele mas não posso andar nesta vergonha de figura pelas ruas portanto gostava que fosses falar com ele, descobrir onde podes desencantar uma lantejoula alternativa para o casaco. Já que não tens alojamento estou disposto a oferecer-te em troca o meu cartão das pousadas da juventude e dinheiro para ires ali à roulote comer uma omelete ou uma merenda. Que tal, aceitas?"

"Posso pensar no assunto?" perguntou o gajo da flor, receando a jornada que lhe era proposta. O capitão resmungou e aquiesceu "podes sim, tens até ao fim do parágrafo".

"Nesse caso aceito e peço desde já desculpa por ter dado a resposta no parágrafo seguinte". O acordo colocou um sorriso na cara dos negociantes. Ao fundo ouviu-se uma gaivota a puxar o autoclismo.

Gajo da flor recebeu: +20 moedas de ouro
Gajo da flor ganhou experiência: 10pt
Gajo da flor iniciou nova jornada: recuperar a lantejoula do capitão

sábado, 6 de abril de 2013

O problema dos comediantes são as cascas de ovo no chão

Há uns dias atrás uma amiga perguntou-me o que eu tinha contra os católicos para andar sempre a fazer piadas com eles e porque não me dedicava um pouco mais aos muçulmanos, por exemplo. A minha resposta imediata foi algo sobre o facto das minhas pretensões serem de chatear os amigos e dado que não tenho nenhuns que gostem de rezar em cima de tapetes e orientados geograficamente, acabo por fazer ênfase maior em cristãos. Mais tarde pus-me a pensar no assunto e reparei que o que disse, apesar de verdade, é apenas uma fracção da história. Afinal de contas porque se perderam as bonitas tradições de gozar com homossexuais, muçulmanos e tantas outras “minorias”? A resposta encontra-se no seio neoplásico, fibrosado e descaído da palavra “aceitável”.

O humor contempla o anormal, pelo menos quando não faz parte da rotina de stand-up de uma mulher que acha que a menstruação e toda a variedade de pensos e tampões são peça de comédia. Este facto acarreta sempre o risco de se ofender alguém, podendo na melhor das hipóteses terminar num nariz partido. Os comediantes profissionais defendem-se deste problema gozando com duas entidades principais: o próprio, como fazem o Alvim e o Nuno Markl, parodiando eternamente as suas próprias vidas como supostas criaturas de cave, virgens, pervertidas e cujas infâncias estão recheadas de inadequação; e personagens que podem ser gozadas por tal ser prática comum ou porque são tão inocentes que qualquer paródia está a anos luz de vestígios de verdade. Assim posso gozar comigo, com o Gandhi, o Obama, o Miguel Relvas, qualquer figura política e pouco mais sobra. A partir daí entramos no território perigoso mas ainda aí há diferentes gradações. Afinal de contas é diferente invadir Moscovo ou Paris. 

Gozar com a homossexualidade é possivelmente um dos maiores perigos para a ostracização imediata num grupo de amigos. Este é um grupo cujo policiamento do politicamente correcto é o sonho molhado do Salazar. Em todas as esquinas há um defensor do “bom nome” da homossexualidade. A razão para isso é enevoada, um misto de “não podemos reacender o ódio do passado” com um “gozar com minorias é feio” turbinado. Ainda se ouve o grande clássico do “tu é que estás inseguro da tua sexualidade” mas eu pergunto quem é que está inseguro aqui? Temos um grupo que não admite a sua fuga à normalidade, uma normalidade manifestamente óbvia dada a impossibilidade de partos por via rectal, que passa metade da vida a lutar pelo direito de serem iguais aos outros (o que é bizarro porque a outra metade é passada a exaltar as suas diferenças) e que não aguenta quando alguém comenta sarcasticamente a sua cultura ou a exagera. Não, um comediante que se atreva a referir os gostos afeminados de uma porção de homossexuais passa 9 em cada 10 vezes por homofóbico, o que corresponde a ser chamado de feiticeiro pela inquisição. Dispensa-se a fogueira, há outras formas de arruinarem vidas. Também não entendo bem o problema da palavra homofóbico, ficava muito mais preocupado se me chamassem homofílico. 

Ser muçulmano nos dias que correm tem os seus pontos altos e baixos. Acredito que seja aborrecido ter os olhos dos outros em cima nos transportes públicos e fazerem-lhes uma colonoscopia antes de os deixar entrar num avião, no entanto há que sentir um orgulho especial pela cultura de medo e opressão que geraram nos povos europeus, aquelas gentes que conquistaram e inventaram a grande maioria do que é hoje a vida para posteriormente invaginarem qualquer vestígio de pénis e converterem-se à religião de dar a outra face para comer mais um par de estalos do resto do mundo. Com um medo tão enraizado que eu me pergunto se o que escrevi até agora me garante uma ameaça de morte, quem precisa de lápis azul? 

Os católicos por outro lado são uns “curtidos”. São europeus por um lado, portanto estão já bem embebidos no sentimento de culpa sem objecto para se manterem no silêncio. Espalharam a fé à lei da espada pelo mundo todo, o que garante uma suposta dívida ad eternum ao resto da humanidade. E apesar de algumas semelhanças, o menino Jesus, que diferencia o cristianismo das outras religiões com maior ênfase na parte em que deus manda com os projectos todos da secretária para o chão e começa de novo, certifica-se que o cristão dos dias de hoje há-de ser espancado, atropelado e violado antes de levantar a voz. No fim, enquanto limpa o metafórico rabo murmura que as contas serão repostas no além. O cristão dos dias de ontem, que pregava a miséria e humildade enquanto regia a Europa com punho de ferro e amansava os aborígenes, tinha a dose de hipocrisia necessária para ignorar o que dizia e fazer correr sangue se fosse necessário. O cristão de hoje não beneficia da aura de medo do muçulmano ou das ondas de indignação, sentimento de ofensa e outras crises de histeria características de grupos como os homossexuais, judeus e outras religiões e cultos que tendem a lançar processos quando são feitas piadas à sua custa. 

Mas isso é bom? Nim. 

Por um lado eu dou-me com cristãos, são pessoas que aparte da crença numa entidade superior porque ouviram falar disso, são absolutamente normais e como tal, uma porção é compatível para amizades comigo. Infelizmente sofrem com a minha língua solta. No entanto, quando deparado com as “minorias” cronicamente vitimizadas uma pessoa passa conversas inteiras medindo as palavras e perguntando-se se vai inadvertidamente ofender alguma sensibilidade. Uma boa regra para escolher amigos é o teste hipotético “se me poderia embebedar à frente deles”. E nenhuma Maria Amélia vitimizada, seja feminista, judia, vegan, muçulmana ou outras que excluí da lista propositadamente por medo pela vida e carreira, alguma vez será capaz de o passar. 

A escola do politicamente correcto terá um fim na europa eventualmente, seja porque os europeus se cansaram dos seus efeitos nefastos, seja porque morreram todos graças a estes. Todos os dias ao fazer piadas ou deixar de as fazer, sente-se inquietação pelo censurado e o auto-censurado. E no dia em que a inquietação dê lugar ao “que se lixe”, irá acabar este longo processo de discriminação positiva e talvez eu possa cá vir fazer piadas sobre tipos de tecido e tapetes de reza. 

Até lá o melhor que posso dar é a virgem Nicki Minaj e o kid Jesus cheio de swagga.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Erro médico

Chovia intensamente no estacionamento do hospital. Manolo olhou novamente para o relógio e suspirou. Há quinze minutos que se tentava recompor sem qualquer sucesso. Os seus membros jaziam como mortos na marquesa que tinha roubado no consultório. Duas poças formavam-se atrás das orelhas, lágrimas de culpa do que tinha feito. Sim, o dia já se tinha alongado infinitamente, as enfermeiras não paravam de o chatear e interromper com perguntas de doentes que aguardavam na sala de espera. Todo o sistema tinha falhado mas não compreendia a leveza como o podiam interromper enquanto ele tinha uma agulha nas costas da doente, penetrando até ao espaço subaracnoídeu.

Manolo arrastou as pernas para o lado, que tombaram desamparadamente, e numa tentativa de se levantar finalmente acabou com a face entre as coxas. Os pensamentos fugiam num frenesim de hora de ponta, ele tinha que se controlar. Respirou fundo e recapitulou os momentos anteriores. Tinha coberto o banco da sua nova colega, inimaginavelmente impreparado para dar cuidados de saúde numa instituição completamente desconhecida. Tinha tomado a doente dela para lhe administrar uma injecção intratecal. Tudo parecia ter corrido bem, os lotes correspondiam ao doente. Só segundos mais tarde se apercebeu que a seringa continha vincristina. Anos de estudo de medicina tinham-no preparado para um momento como este, sem falar sequer do internato de oncologia. E sem sequer levantar um mínimo de suspeita, o erro tinha sido cometido, pelas mãos dele. Roberta, de 27 anos, casada e com um filho, vítima do maior erro da sua carreira. A injecção intratecal de vincristina provocar-lhe-ia muito provavelmente a morte. Sem qualquer desculpa ele não tinha visto o rosto do processo, não tinha notado que ela era de Miranda do Douro. E foi ainda sentado e debruçado nas costas de Roberta que a enfermeira lhe fez notar a folha de rosto e nesse ponto ele conseguia rever a pior sensação da sua vida, como se o seu estômago tivesse sido arrancado pelas costas por uma goma de ursinho da Haribo®. Não tinha matado uma pessoa, tinha condenado um hospital inteiro… se os militares conseguissem impedir mais carnificina. Em poucos segundos Roberta tornou-se num réptil gigante, uma patada depois o mundo havia escurecido o que o trazia ao ponto em que havia ficado.

Limpou as lágrimas e levantou-se. O cenário era aterrador, como ficar numa festa preso a falar com uma pessoa que trouxe o iPad. O piso do gabinete, branco e frio, contrastava com o sangue e os corpos da enfermeira e do estagiário que o tinham acompanhado. Os seus corpos cortados em filetes lembravam as embalagens de bifes do supermercado, bonitos por cima, o lado negro, sangue e peças intragáveis por baixo. “Só falta a esponjinha”, pensou. Passando por cima deles saiu cautelosamente pelo buraco que outrora teria sido a porta, agora com o caixilho arrancado pela monstruosa cabeça da mirandaraptor. Nada na sua vida o tinha preparado para o que veria a seguir. O ar tornou-se irrespirável, um misto de areia e óleo Johnson. Cabos de rede faziam de cobras, escorregando pelas paredes e aterrando no chão e no corpo escamoso de Roberta. O sistema de apoio ao médico tinha sobreaquecido novamente e o ar condicionado, entupido em teias de aranha que as empregadas insistiam em deixar por pensar trazerem-lhes dinheiro e pseudomonas, não tinha sido suficiente. A sala de informática explodiu, num caos de figuras de anime, óculos de massa e respectivos informáticos, lubrificante barato e colecções pornográficas japonesas. A pobre e mortífera mirandaraptor tinha tido o segundo azar do dia ao passar no corredor no momento errado. Mas milhares de vidas foram assim poupados, além de todo o dinheiro necessário para mobilizar as forças armadas.

Anos mais tarde Manolo ainda se lembrava do caso, apesar de que agora substituíra a bata e estetoscópio por fato e gravata que usava como director e coçador profissional de micose. Todo o incidente lhe continuava a tirar noites de sono, noites perdidas a dar seminários a internos sobre como um erro do sistema informático (como constava nos relatórios oficiais) tinha custado a vida a uma doente, uma enfermeira e um interno, e como quase viu a sua vida perder-se frente à terrível e temível mirandaraptor.

Não cometam o mesmo erro que o Manolo. Exija que o seu consultório esteja afastado do departamento técnico de informática do seu hospital.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Psy-ai-ai


Os meus gostos musicais são um tanto quanto peculiares mas vão a pouco e pouco encaixando numa certa forma igual à de tantos amigos meus: ouvir músicas “que os nossos pais ouviam” porque hoje em dia há a ideia de que cantar é algo que se faz com um sintetizador, implica o uso de um fedora e, no caso masculino, uma total ausência de genitália. No caso de uma mulher, cantar implica um videoclip porque a música é muito má a transmitir nudez (não que eu me importe muito com isso, mas a maior parte das vezes meto a televisão em mute para não me distrair).

Mas há dois estilos de que não me afasto muito: psytrance (e goatrance num grau talvez um pouco menor) e Jamiroquai. Sim, Jamiroquai é uma banda e não um estilo. Mas também há mais tablets no mercado e cada vez que mexo na minha em público vem um palhaço perguntar-me que iPad estou a usar. Não há ninguém como o Jami logo não faz sentido dar-lhe uma categoria.

Voltando ao psytrance.

O psytrance mantém-se relativamente fiel às suas origens e tem características que apelam, não ao homem moderno que tem coisas como necessidades emocionais e usa roupas que o tornam tão ágil como um hamburger no chão, nem ao homem indie, que faz graves reacções anafilácticas a tudo o que não tenha um filtro do instagram em cima, mas a uma espécie muito própria. O psytrance apela ao ouvido daqueles que querem ouvir música e não dormir, que querem ser produtivos e criativos, aos maníacos, aos que gostam de dançar mas não percebem porque a house music passou a ser um rap com uhn-tiss atrás. O psytrance não dá para utilizadores de smart-shops, é demasiado sincero e não tem intenções de pertencer ao grupinho.

Outro aspecto muito apelativo é que os artistas que produzem este tipo de música já sabem mexer em sintetizadores com a experiência devida. Todos eles sabem que qualquer fórmula matemática tem melhor voz que a nicki minaj, misturá-las é criar um híbrido que necessariamente será pior do que o som puro.

Isto são tudo opiniões que não exprimem com clareza porque gosto de psychadelic trance. Faço agora um pequeno exercício para tentar percebê-lo: Custa-me muito a integrar-me na sociedade actual, uma em que a maioria das pessoas toma uma decisão semi-informada de condenar uma cultura inteira ao fracasso e destruição a médio-longo prazo. Não sendo de todo uma comparação perfeitamente legítima, para mim e uma pequena mão cheia de pessoas, viver no mundo ocidental é como viver com cancro. Sobreviver neste mundo pitoresco implica uma dose cavalar (ha… cavalo colombo, sad pun) de sadomasoquismo. Há outra solução, a tristeza e a depressão, mas entrar nesse caminho é mais uma vez entrar no mágico mundo politicamente correcto da vitimização, a grande droga do século XXI. Fazer um luto por um fim incerto é tão absurdo como um matemático chorar porque não percebe como funciona uma fórmula que nunca ouviu falar. E é para mariquinhas.
Nesta conjuntura entra o psy-trance, a marcha triunfante em direcção a um horizonte tão animador como a sucursal dos correios mais perto de si! É uma música que oiço em direcção ao hospital quando sei que me esperam banhos de estatismo, quando estou a ver no facebook as novidades das mulheres polvilhando frases em helvética que nunca deviam ter visto a luz do dia e dos machos beta a defender a colectivização dos testículos para ver se lhes calha um na rifa. É a música que oiço enquanto escrevo e que me faz sorrir porque me lembra que a minha sanidade mental é tão estável como um copo de água na mão de um parkinsónico e que mais importante que passear do eu formal, criatura que fica muito bem de fato e gravata, para o campo da insanidade “saudável”, é saber o caminho, ir dormir a casa e voltar ao campo dos cogumelos quando é preciso.

E no fim escrever um texto de ~650 palavras e pensar que está espectacular porque estava era com atenção à música.