quinta-feira, 14 de março de 2013

Erro médico

Chovia intensamente no estacionamento do hospital. Manolo olhou novamente para o relógio e suspirou. Há quinze minutos que se tentava recompor sem qualquer sucesso. Os seus membros jaziam como mortos na marquesa que tinha roubado no consultório. Duas poças formavam-se atrás das orelhas, lágrimas de culpa do que tinha feito. Sim, o dia já se tinha alongado infinitamente, as enfermeiras não paravam de o chatear e interromper com perguntas de doentes que aguardavam na sala de espera. Todo o sistema tinha falhado mas não compreendia a leveza como o podiam interromper enquanto ele tinha uma agulha nas costas da doente, penetrando até ao espaço subaracnoídeu.

Manolo arrastou as pernas para o lado, que tombaram desamparadamente, e numa tentativa de se levantar finalmente acabou com a face entre as coxas. Os pensamentos fugiam num frenesim de hora de ponta, ele tinha que se controlar. Respirou fundo e recapitulou os momentos anteriores. Tinha coberto o banco da sua nova colega, inimaginavelmente impreparado para dar cuidados de saúde numa instituição completamente desconhecida. Tinha tomado a doente dela para lhe administrar uma injecção intratecal. Tudo parecia ter corrido bem, os lotes correspondiam ao doente. Só segundos mais tarde se apercebeu que a seringa continha vincristina. Anos de estudo de medicina tinham-no preparado para um momento como este, sem falar sequer do internato de oncologia. E sem sequer levantar um mínimo de suspeita, o erro tinha sido cometido, pelas mãos dele. Roberta, de 27 anos, casada e com um filho, vítima do maior erro da sua carreira. A injecção intratecal de vincristina provocar-lhe-ia muito provavelmente a morte. Sem qualquer desculpa ele não tinha visto o rosto do processo, não tinha notado que ela era de Miranda do Douro. E foi ainda sentado e debruçado nas costas de Roberta que a enfermeira lhe fez notar a folha de rosto e nesse ponto ele conseguia rever a pior sensação da sua vida, como se o seu estômago tivesse sido arrancado pelas costas por uma goma de ursinho da Haribo®. Não tinha matado uma pessoa, tinha condenado um hospital inteiro… se os militares conseguissem impedir mais carnificina. Em poucos segundos Roberta tornou-se num réptil gigante, uma patada depois o mundo havia escurecido o que o trazia ao ponto em que havia ficado.

Limpou as lágrimas e levantou-se. O cenário era aterrador, como ficar numa festa preso a falar com uma pessoa que trouxe o iPad. O piso do gabinete, branco e frio, contrastava com o sangue e os corpos da enfermeira e do estagiário que o tinham acompanhado. Os seus corpos cortados em filetes lembravam as embalagens de bifes do supermercado, bonitos por cima, o lado negro, sangue e peças intragáveis por baixo. “Só falta a esponjinha”, pensou. Passando por cima deles saiu cautelosamente pelo buraco que outrora teria sido a porta, agora com o caixilho arrancado pela monstruosa cabeça da mirandaraptor. Nada na sua vida o tinha preparado para o que veria a seguir. O ar tornou-se irrespirável, um misto de areia e óleo Johnson. Cabos de rede faziam de cobras, escorregando pelas paredes e aterrando no chão e no corpo escamoso de Roberta. O sistema de apoio ao médico tinha sobreaquecido novamente e o ar condicionado, entupido em teias de aranha que as empregadas insistiam em deixar por pensar trazerem-lhes dinheiro e pseudomonas, não tinha sido suficiente. A sala de informática explodiu, num caos de figuras de anime, óculos de massa e respectivos informáticos, lubrificante barato e colecções pornográficas japonesas. A pobre e mortífera mirandaraptor tinha tido o segundo azar do dia ao passar no corredor no momento errado. Mas milhares de vidas foram assim poupados, além de todo o dinheiro necessário para mobilizar as forças armadas.

Anos mais tarde Manolo ainda se lembrava do caso, apesar de que agora substituíra a bata e estetoscópio por fato e gravata que usava como director e coçador profissional de micose. Todo o incidente lhe continuava a tirar noites de sono, noites perdidas a dar seminários a internos sobre como um erro do sistema informático (como constava nos relatórios oficiais) tinha custado a vida a uma doente, uma enfermeira e um interno, e como quase viu a sua vida perder-se frente à terrível e temível mirandaraptor.

Não cometam o mesmo erro que o Manolo. Exija que o seu consultório esteja afastado do departamento técnico de informática do seu hospital.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Psy-ai-ai


Os meus gostos musicais são um tanto quanto peculiares mas vão a pouco e pouco encaixando numa certa forma igual à de tantos amigos meus: ouvir músicas “que os nossos pais ouviam” porque hoje em dia há a ideia de que cantar é algo que se faz com um sintetizador, implica o uso de um fedora e, no caso masculino, uma total ausência de genitália. No caso de uma mulher, cantar implica um videoclip porque a música é muito má a transmitir nudez (não que eu me importe muito com isso, mas a maior parte das vezes meto a televisão em mute para não me distrair).

Mas há dois estilos de que não me afasto muito: psytrance (e goatrance num grau talvez um pouco menor) e Jamiroquai. Sim, Jamiroquai é uma banda e não um estilo. Mas também há mais tablets no mercado e cada vez que mexo na minha em público vem um palhaço perguntar-me que iPad estou a usar. Não há ninguém como o Jami logo não faz sentido dar-lhe uma categoria.

Voltando ao psytrance.

O psytrance mantém-se relativamente fiel às suas origens e tem características que apelam, não ao homem moderno que tem coisas como necessidades emocionais e usa roupas que o tornam tão ágil como um hamburger no chão, nem ao homem indie, que faz graves reacções anafilácticas a tudo o que não tenha um filtro do instagram em cima, mas a uma espécie muito própria. O psytrance apela ao ouvido daqueles que querem ouvir música e não dormir, que querem ser produtivos e criativos, aos maníacos, aos que gostam de dançar mas não percebem porque a house music passou a ser um rap com uhn-tiss atrás. O psytrance não dá para utilizadores de smart-shops, é demasiado sincero e não tem intenções de pertencer ao grupinho.

Outro aspecto muito apelativo é que os artistas que produzem este tipo de música já sabem mexer em sintetizadores com a experiência devida. Todos eles sabem que qualquer fórmula matemática tem melhor voz que a nicki minaj, misturá-las é criar um híbrido que necessariamente será pior do que o som puro.

Isto são tudo opiniões que não exprimem com clareza porque gosto de psychadelic trance. Faço agora um pequeno exercício para tentar percebê-lo: Custa-me muito a integrar-me na sociedade actual, uma em que a maioria das pessoas toma uma decisão semi-informada de condenar uma cultura inteira ao fracasso e destruição a médio-longo prazo. Não sendo de todo uma comparação perfeitamente legítima, para mim e uma pequena mão cheia de pessoas, viver no mundo ocidental é como viver com cancro. Sobreviver neste mundo pitoresco implica uma dose cavalar (ha… cavalo colombo, sad pun) de sadomasoquismo. Há outra solução, a tristeza e a depressão, mas entrar nesse caminho é mais uma vez entrar no mágico mundo politicamente correcto da vitimização, a grande droga do século XXI. Fazer um luto por um fim incerto é tão absurdo como um matemático chorar porque não percebe como funciona uma fórmula que nunca ouviu falar. E é para mariquinhas.
Nesta conjuntura entra o psy-trance, a marcha triunfante em direcção a um horizonte tão animador como a sucursal dos correios mais perto de si! É uma música que oiço em direcção ao hospital quando sei que me esperam banhos de estatismo, quando estou a ver no facebook as novidades das mulheres polvilhando frases em helvética que nunca deviam ter visto a luz do dia e dos machos beta a defender a colectivização dos testículos para ver se lhes calha um na rifa. É a música que oiço enquanto escrevo e que me faz sorrir porque me lembra que a minha sanidade mental é tão estável como um copo de água na mão de um parkinsónico e que mais importante que passear do eu formal, criatura que fica muito bem de fato e gravata, para o campo da insanidade “saudável”, é saber o caminho, ir dormir a casa e voltar ao campo dos cogumelos quando é preciso.

E no fim escrever um texto de ~650 palavras e pensar que está espectacular porque estava era com atenção à música.