sábado, 27 de fevereiro de 2016

A jornada do homem axialmente desafiado proveniente de um bairro da freguesia de Marvila

A viagem pela paisagem erodida de Arraiolos deixara o Anão de Chelas exausto. O seu elefante, Abreu, contorcia a tromba a cada passo, mais hesitante que o anterior. Era o final de uma tarde de verão, o sol encobria-se no horizonte, vermelho, anunciando que sangue havia sido derramado na China, segundo Legolas. A viagem pela A2, apesar de calma, era longa. Finalmente chegaram à estalagem. O Anão de Chelas, com a réstia de bom senso que possuía, ordenou Abreu a estacionar de marcha atrás perpendicular, entre uma zebra e um mata-velhos. Nunca se sabia o que reservaria a manhã seguinte e não podia adiar a jornada porque não conseguia manobrar Abreu de volta à estrada. Desmontou com dificuldade, fez-lhe uma festa na tromba e dirigiu-se à recepção.

A estalagem da Inatel abundava em odores geriátricos, desde a tradicional bola de naftalina ao distinto aroma de sebo de colarinho envelhecido em pele de pergaminho. A recepcionista era uma jovem, loira, sem mais nenhum traço discernível já que o balcão era bastante elevado e o anão não conseguia colocar os olhos acima dele. Conformando-se com a falta de acessibilidade, o anão de Chelas imaginou-a com uma grande prateleira.

“Minha senhora, queria um quarto para dormir esta noite, nada em particular ou com luxos excessivos dado que sou um anão de brandos costumes e paixões simples. Basta-me uma cama com uma janela, e se possível casa-de-banho privativa. Acessórios de mobilidade não são necessários de todo, já escalei as montanhas mais altas do país, não é um trono de porcelana que me vai parar. Queria também saber a oferta degustativa da estalagem, tanto para mim quanto para o meu elefante. Este está à porta e fez muitos quilómetros, merecendo manjar melhor que o meu, que apenas lhe puxei as orelhas ora para a esquerda, ora para a direita, orientando-o a bom destino. Queria saber se o parqueamento nesta zona é gratuita, o Abreu é claustrofóbico e não lhe faria bem nenhum passar a noite num parque de reboques da EMEL. Em suma, queria acomodação banal e a bom preço, com duas refeições quentes para não ter que ir ao intermarché.”

A recepcionista sorriu por detrás do balcão, respondendo “Queria? Já não quer?”

O anão deu um pequeno salto para olhar nos olhos da recepcionista, verificando, no cume da altura que conseguiu atingir, que afinal esta não era uma jovem loira mas sim um empregado de café de meia idade, gordo como uma pipa e com um bigode grisalho, untado desigualmente com farandol, de onde pendia metade de uma alheira. O choque tomou conta da sua mente, lembrando-o dos episódios em todas as tascas por onde havia passado na vida onde os mais diversos empregados de mesa, empunhando orgulhosamente um trapo de cozinha ao ombro, tinham feito troça da sua mensagem pela gramática empregue. Aqueles pequenos aterros de esquina onde debaixo da sombra e longe do olhar da ASAE se vendia o que coloquialmente se tratava por comida mas cuja realidade era díspar, eram na realidade campos de batalha onde os homens mostravam o seu valor ao manterem a sanidade e saírem da lá saciados por umas horas, até o conteúdo microbiano reclamar pelo espasmo gástrico e pela libertação esofágica. Estas memórias eram cicatrizes de guerra e os seus neurónios os soldados, já esgotados e com a esperança de voltar a casa. Um bom general não pede das suas tropas o que elas não podem dar, e assim pode contar com elas no dia seguinte.

Friamente o anão de Chelas retorquiu, “tem razão, agora já não quero”, virou costas e saiu. No final da mesma rua uma pequena residência de universitárias reluzia com a promessa de um leito e o aconchego do álcool.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

As aventuras do gajo da flor 4

A cidade do porto de Belruf abraçou o gajo da flor nos primeiros instantes. Era um aglomerado de habitações de dois andares, com ruas apertadas como as partes baixas de uma virgem e labirínticas como os pensamentos de romance de uma prostituta. Encostados às paredes encontravam-se ocasionalmente pedintes, vendendo pensos rápidos e cubos knorr, emanando um odor mais nauseabundo que os marinheiros, pela total ausência de água nas zonas cutâneas desde a ruptura da bolsa na barriga da mãe. No entanto o rumo nunca se perdia em Belruf, auxiliado intermitentemente pela estrela guia que era o obelisco ou silo de gramíneas do centro da cidade, apenas obscurecido por um transeunte encapuçado que saltava de telhado em telhado.
O gajo da flor parou por momentos, o aroma dos cubos knorr entrelaçando-se à omelete parcialmente digerida, tentava agora puxá-la para o exterior, violando brutalmente o seu esófago. O gajo concentrou-se no seu propósito, na promessa de alojamento pela lantejoula e ergueu-se novamente, recomeçando a andar. O que o movia era a possibilidade de se afastar dos pedintes e lavar a cara na fonte do centro da cidade, que certamente jorraria água semi-transparente pelo pénis de um infante com asas petrificado. De repente o céu encobriu-se. Olhando verticalmente o gajo da flor viu a figura em capuz, equilibrada num galo bússola instalado na chaminé da casa à sua frente. Num instante este atirou-se rumo ao solo, esticando os braços como um mergulhador profissional ou o miúdo gordo da escola quando perguntam se alguém quer bolo. Este caia agora vertiginosamente em direcção a uma carroça cheia de feno. O mergulho culminou num sonoro *plop*, e o gajo da flor correu em seu auxílio, ignorando o grito surdo da omelete que acariciava já a sua faringe. As palhas moveram-se, saindo a criatura do meio da ração de cavalo como se tivesse acabado de acordar de um sonho sobre baguetes.

"Estás bem?", perguntou o gajo da flor, com a sua característica familiaridade desconfortável com pessoas que nunca tinha conhecido.
"Estou sim, obrigado meu caro cavalheiro. Já é um hábito meu, tão antigo quanto passear pelas telhas alheias, em jeito de credo de assassinos", retorquiu o jovem enquanto retirava pedaços de palha da sua barba pontiaguda.
O gajo da flor levantou a sobrancelha. "Assassinar pessoas é uma coisa, outra é dar cabo dos tectos dos trabalhadores. Os telhados são como as formações espartanas, se uma se parte, toda a estrutura está comprometida. Lá que andes a matar pessoas por dinheiro não me diz respeito, mas podes estar a provocar uma inundação no quarto de alguém! ... e já agora, se estás tão bem e inteiro, porque é que a carroça está a sangrar profusamente?"
"Hein?"
"Sim, está a jorrar sangue no chão, e além disso vejo um braço espetado ali de lado, de alguém com as mesmas vestes que tu. Espero que o tipo que caiu não tivesse alguma doença, ainda podias ter apanhado alguma coisa!"
Uma sombra apoderou-se do olhar do homem em capuz. Este abriu os olhos e fez uma cara feroz, como uma criança obesa e mimada a quem lhe é negado o bolo. Gritou "Olha que eu sei tudo sobre SIDA!"
"SIDA?", perguntou o gajo da flor, visivelmente confuso.
"Sim, SIDA", disse o Ezio, perdão, a figura encapuçada, "e não está ali ninguém nem há sangue, fui mesmo eu que saltei de cima do galo! E só mesmo porque eu sou uma pessoa acima das tuas mesquinhices, deixo-te um conselho, não compres caldos knorr aos pedintes. Eles fazem-nos com uma mistura de ervas e gordura das costas retirada com uma espátula de pedreiro."
O gajo da flor respondeu, "por acaso conheci um pedreiro e não me falou sobre espátulas."
Nesse momento a mão que pendia da carroça deu um esticão e ouviu-se o gemido. A figura em capuz, sentindo-se exposta, não respondeu mais e saltou para o telhado mais próximo, atirando com meia dúzia de telhas ao chão. No fundo ouviram-se passos da guarda republicana em perseguição. No tumulto, o rapaz deixou cair uma adaga do uniforme, que o gajo da flor apanhou e um pequeno livro com sinais de uso frequente, que colocou no bolso de trás das calças.

Gajo da flor recebeu: Adaga do credo dos assassinos
Gajo da flor recebeu: Manual Oxford de HIV, 3ª edição
Gajo da flor ganhou experiência: 10pt