domingo, 19 de maio de 2013

As aventuras do gajo da flor 3

O gajo da flor dirigia-se agora determinado a chegar ao homem das lantejoulas sem novas pausas para ingerir omeletes.

Atravessava presentemente um campo verdejante entre o porto e a cidade, discretamente livre de civilização, apenas uma casa de colmo aqui e ali, um aldeão que o cruzava na estrada de terra batida a intervalos de dez minutos e o esporádico pato chinês. Todo este mundo lhe parecia encantado, como a vida da noite parece mágica ao universitário, um misto de cores vivas e bebidas transparentes. O pensamento fê-lo considerar que devia ter um alguidar à mão, não fosse o caso de todo o entusiasmo lhe dar também a volta ao estômago.

Notoriamente o capitão Estrela tinha a mesma noção de distâncias como um hamburger mal passado ou um treinador de gordos. O suor lavava os poros do gajo da flor como molho de café em bifinhos de lombo, o sol da planície queimava-lhe a pele como entremeada grelhada ao ar livre, cada vez mais o seu corpo se queixava da jornada, o cérebro pregando-lhe partidas, todas envolvendo comida. Por momentos pensou-se um ovo kinder grand surpresa mas o seu raciocínio lógico relembrou-o que nunca na vida atingiria preços tão elevados no mercado. Provavelmente era antes um ovo de páscoa regina, sem brinquedo no meio, ou de uma daquelas marcas que se oferecem às crianças da família que não nos são propriamente chegadas, mais baratos e de espessura mais humilde.

Mas, finalmente, avistava a cidade, com um obelisco erguendo-se e rompendo o céu, provavelmente a torre da igreja ou um silo de gramíneas. A visão do seu destino deu-lhe o alento necessário para terminar a caminhada, sendo no entanto bruscamente interrompido por uma personagem estranha que o interpelou.

"Viva! Posso conhecer-te?", disse o rapaz. O gajo da flor atentou na figura, varrendo-a de alto a baixo, como um professor catedrático a avaliar a carne fresca nas aulas de primeiro ano. Era um provável adolescente, na casa dos 16 anos, de estatura raquítica. Tinha cabelos curtos, escuros como uma noite sem lua e a expressão de inocência e uma certa ignorância. Vestia roupas simples, algo limpas e discretas. Os seus sapatos demonstravam um uso franco, de quem não tem medo de se fazer à estrada a pé em vez de levar o carro para ir à padaria. E não tinha braços.

"Podes conhecer-me, rapaz, mas antes diz-me quem és! Eu sou o gajo da flor e venho de uma terra distante!"

"Eu sou o aprendiz de pedreiro, os meus amigos chamam-me Rolo."

"Rolo? Porquê Rolo?"

"Não é óbvio? Adiante, a vida de pedreiro está a sufocar-me, é um desconsolo. A maioria das pessoas apenas vê o glamour da nossa profissão, de certa forma foi isso que me atraiu. Foram as festas, conhecer as pessoas, fazer calçadas que destroem os pés das mulheres enquanto elas exclamam por mais, foi a fama que me trouxe a este caminho. Mas o que ninguém vê, por detrás dos bastidores, é que as pedras não vêm já talhadas, é preciso trabalho, empenho, amor e carinho para as moldar à nossa imagem" - Rolo parou para limpar as lágrimas que se acumulavam e de seguida continuou - "as mulheres olham para mim como se fosse capaz de lhes construir um T2 nas nuvens... mas nenhuma quer talhar o espaço vazio no meu coração."

O gajo da flor interrompeu-o.

"Rolo, isso fui muito panasca, tens a certeza que não gostam de ti porque não tens braços?"

"Não tenho braços, eu? Ridículo! O problema é a insensibilidade das mulheres dos dias de hoje! Só querem pavimentos isto, pavimentos aquilo, são consumistas e nunca pensam em estimar a vida! A vida é a essência da Humanidade, as obras só têm valor se estivermos vivos! Eu sei que no mundo há uma mulher que vai olhar para mim e ver para lá do meu calcário, que vai ver a minha alma..."

"Continua assim e a única mulher que vai ver a tua alma é a empregada do cangalheiro. Continuo a achar que o teu problema é não teres braços mas essa conversa de sentimentos não pode ajudar muito. Mas afinal o que queres tu? Estás com rodeios e não me dizes!" O tom do gajo da flor tornava-se mais grave enquanto ele acelerava o passo, o jorrar de sentimentos do aprendiz de pedreiro não fazia sentido nenhum.

Rolo aclarou a garganta. "Quero ir à aventura contigo, combater dragões, abraçar donzelas, aprender danças de salão!"

"Mas tu vais abraçar donzelas sem braços? Queres combater dragões sem uma mão para segurar a espada? Estás a pensar que vais metê-la entre os dedos do pé enquanto te equilibras na cabeça? Eu nunca matei um dragão mas duvido que seja o mesmo que fazer um postal de natal!"

"Meu amigo homem da flor, tu também tens defeitos! Eu bem vejo que os teus olhos andam semi-cerrados, noto que escondes tenebrosos segredos. Esses apêndices que te pendem dos ombros são convenções impostas à humanidade por ditadores que defendem um ideal físico inatingível, que acham que se não somos iguais a eles então somos defeituosos, inaptos para certas tarefas, que não podemos escalar os cumes mais altos ou agarrar os desafios mais árduos. Não consegues ver para lá do meu corpo? Não consegues ver o meu valor, a minha coragem, a ânsia de aventura?"

"Consigo ver isso tudo, o meu problema é que não consigas agarrar nos sacos de compras quando formos ao mercado. Façamos um acordo, Rolo. Orienta-me pela cidade e podes andar comigo. Não te ajudarei mais do que o que faria a um outro companheiro, se a construção social que é a tua falta de braços se tornar um transtorno, terás que superá-la sozinho, concordas?"

Rolo consentiu. A restante viagem fez-se em silêncio, as palavras agressivas ainda pendiam no ambiente. Não obstante, apreciou-se a paz do momento até à cidade e, antes de esta ser penetrada, o grupo já se havia comprometido em manter as boas maneiras enquanto os seus caminhos estivessem unidos.

Nos limites da cidade Rolo não prestou atenção ao chão e tropeçou na linha tracejada gigante, melhor visível em vista aérea do mapa. Caído e sem braços para se levantar, o gajo da flor fez jus à promessa e deixou-o ficar a observar detalhadamente a sua obra de pavimento, continuando a viagem até à praça sozinho.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

As aventuras do gajo da flor 2


As roupas do gajo da flor enxugaram depressa no sol do porto, agora dava-se por contente por ter trazido calças de ganga em vez de ter roubado as calças de yoga da irmã. A durabilidade do tecido em condições adversas jogaria a seu favor no longo prazo, mesmo baixando o appeal perante a comunidade homossexual. Antes odiado e vestido do que amado mas com a genitália a esfregar-se contra as intempéries.

Com calma dirigiu-se à frente da roulotte das omeletes. Era uma roulotte branca, antiga, enferrujada prematuramente pela maresia e a diarreia das gaivotas. Através da janelinha das vendas transpirava um odor a omeletes acabadas de fazer e colónia barata. O gajo inclinou-se no balcão na tentativa de encontrar quem o servisse. Repentinamente saltou na frente dele um homem ruivo, de sorriso psicadélico. O seu cumprimento levou o gajo da flor a saltar para trás e com o susto acabou por cair.

“Heeeeey!”, cumprimentou o vendedor e continuou “Posso ajudá-lo?”

“Oh… sim, sim, claro. Queria uma omelete com fiambre.”

O vendedor acenou e gritou para o fundo da roulotte, “olha a omelete!”. Seguidamente deslocou-se para o lado e iniciou o longo e penoso processo de bater os ovos, que por anos de experiência e mãos calejadas, transformou numa harmoniosa sinfonia clássica, se tocada por garfos a bater em taças de porcelana.

“Eu sou o Pedro, faço omeletes para os marinheiros há 20 anos! Sabe, quem me inspirou a seguir a cozinha fina foi o Jamie Oliver, cresci com os programas da Filipa Vacondeus mas depois de comprar todos os trens de cozinha da IdeiaCasa senti-me perdido. Foi o Jamie Oliver, na sua eterna sabedoria, que me pegou com as suas mãos e deu rumo à minha vida.”

Sentindo-se constrangido pelo desembaraço do chef Pedro em contar pormenores íntimos da sua vida mas sem interesse em divulgar a dele, o gajo da flor enveredou pelo caminho inquisitivo.

“Mas conheceu o Jamie Oliver?”

“Não, não! Uma vez cruzei-me com ele na rua, ele pegou-me no punho a pensar que eu era um rolo de carne. Penso que estava a fazer uma campanha sobre comida de cantina e acabou por me mandar embora… mas houve química gastronómica. Desde então que me dedico à minha roulotte, na esperança que um dia possa dizer que no mundo ninguém sofre por falta de omeletes e que eu fiz a minha parte. É uma guerra, sabe?” Findo o trabalho de obter a mistura homogénea perfeita, tratou de criar uma sensível chama debaixo da frigideira. Todo o processo parecia ao gajo da flor uma dança, executada de forma graciosa e delicada, uma autêntica cerimónia real. Os ovos começaram a gemer sobre o calor e Pedro preencheu o seu topo líquido com pedaços finíssimos de fiambre, cortados sensivelmente com a unha do seu dedo mindinho. No ar sentiu-se a sombra e bênção do método de Jamie Oliver, o carinho manual na cozinha contra a tirania do uso de instrumentação estéril e fria. Com a mesma destreza dobrou o colóide, que se moldava como barro nas mãos de um artista.

“Não fazia ideia… há anos que como omeletes mas de onde venho nós tomamo-las como algo certo na vida. Nunca pensei que em outras partes do mundo houvesse tanta falta delas. Claro que não tenho a experiência do senhor Pedro, nem tampouco era viajado até hoje.”

“Ah sim? De onde é?”

O gajo da flor sentiu-se constrangido pela pergunta. Estava no início da sua aventura e não queria cometer erros deixando transparecer informação que pudesse ser usada contra ele. A sua testa enrugou e respondeu, “não sou daqui mas no dia em que não houver falta de omeletes levo-o à minha terra para casar com uma irmã minha! Mas diga lá, com tantos problemas com esta iguaria, certamente que há comissões a tratar do assunto, não?”

Pedro riu-se, colocando as mãos nas extremidades globosas do seu abdómen. “Sim, certamente que há! Temos encontros e palestras bianualmente! Mas olhe, vou terminar a sua refeição antes que fique fria.”

Com isto, o cozinheiro retirou uma faca da cintura com que descolou a omelete da frigideira. Cautelosamente colocou o polegar no topo desta e com a pinça improvisada passou o real maná para um par de toalhetes de esplanada que rapidamente saturaram com o óleo, o mais rico manjar dos deuses. Trocou-se comida por moedas de ouro e o gajo da flor despediu-se cordialmente.

“Ainda volto cá para experimentar com cogumelos!”

“Volte sempre! Da próxima arranjo-lhe uns panfletos!”

Entretido com a única comida que tinha visto a manhã toda, o gajo da flor tomou a direcção que o capitão Estrela lhe tinha indicado. Um pensamento não lhe saia da cabeça no entanto, “eu não vi óleo nenhum na frigideira”.

sábado, 11 de maio de 2013

As aventuras do gajo da flor 1

Seria por volta do meio dia quando o barquinho do gajo da flor chegou ao porto de Belruf. O céu brilhava e as gaivotas circundavam os pescadores, untados de vísceras de fauna marinha. A paisagem olfativa complicava-se sobretudo pela total ausência de rinite, resultado da instilação de quantidades indústriais de água salgada pelas narinas nos últimos dias. Este não era o cenário que o gajo da flor esperava que o cumprimentasse no início das suas aventuras, no entanto, em território totalmente desconhecido, necessitava de obter alguma informação, um mapa, um pão de ló, algo que lhe desse algum sentido de orientação e um objectivo. Esse mesmo pensamento relembrou-lhe as advertências dos irmãos para não ir à aventura sem um objectivo definido, sem uma donzela para salvar ou um caminho bidimensional no qual tem que se terminar no fundo direito do ecrã. Com uma lágrima no olho e saudades de caril, o gajo da flor ajoelhou-se nas tábuas molhadas do porto enquanto gemia.

Rapidamente a posição chamou a atenção do capitão de um navio, que se dirigiu a ele.

"Hey, tu, tens ar de marinheiro mas não tens espinhas no cabelo ou pulseiras de guelras. Primeiro dia de trabalho?", disse o capitão numa voz não surpreendentemente grosseira. O capitão tinha um chapéu com uma pena branca, roupas demasiado douradas para ser levado a sério fora de uma discoteca de quarentões, um sabre que reluzia menos que a casaca e pele facial tão seca e espessada pelo sol que se fossem os pés de uma mulher, ela faltaria ao trabalho para ir à pedicure.

O gajo da flor fungou, conteve o desespero e retorquiu, "não, eu cheguei hoje num barquinho, vim a Belruf à procura de aventura. Eu sou o gajo da flor, quem é o senhor?". O gajo da flor não conseguiu impedir o pensamento de que o capitão havia de ser ou um chulo ou polícia sinaleiro.

"Sou o capitão Estrela, da nobre embarcação Engracia! Se vieste à procura de aventura, penso que tenho uma boa proposta para ti. Diz-me, já tens estadia e alojamento? As agências de viagem normalmente tratam disso mas, pelo aspecto do teu barquinho, parece-me que decidiste vir à aventura sem tomares as precauções necessárias"

O gajo da flor levantou-se finalmente mas permanecendo a olhar para as tábuas. "Tem razão capitão, ainda fui à Abreu mas o pacote para Belruf era caro e só tinha meia estadia. Já que vinha à aventura pensei que isso pudesse contemplar arranjar alojamento... só quando cheguei é que descobri quanto me apetecia uma omelete, razão do meu desespero. Qual é a sua proposta, capitão Estrela?"

O capitão riu-se entre dentes e disse "Em primeiro lugar não é Belruf, tens que largar esse sotaque idiota antes que te comecem a atirar com medalhões de pescada. Diz-se Belruf, percebes? Adiante, como já deves ter reparado, razão pela qual não deixas de olhar para o chão, está a faltar-me uma lantejoula no casaco. Ele está absolutamente ridículo e tenho inclusivamente evitado lidar com a minha tripulação, isto é mais que causa para um motim! O casaco foi uma prenda de um amigo de longa data que vive mesmo aqui na freguesia, a dois quilómetros para norte, ao pé da praça central. Eu falaria directamente com ele mas não posso andar nesta vergonha de figura pelas ruas portanto gostava que fosses falar com ele, descobrir onde podes desencantar uma lantejoula alternativa para o casaco. Já que não tens alojamento estou disposto a oferecer-te em troca o meu cartão das pousadas da juventude e dinheiro para ires ali à roulote comer uma omelete ou uma merenda. Que tal, aceitas?"

"Posso pensar no assunto?" perguntou o gajo da flor, receando a jornada que lhe era proposta. O capitão resmungou e aquiesceu "podes sim, tens até ao fim do parágrafo".

"Nesse caso aceito e peço desde já desculpa por ter dado a resposta no parágrafo seguinte". O acordo colocou um sorriso na cara dos negociantes. Ao fundo ouviu-se uma gaivota a puxar o autoclismo.

Gajo da flor recebeu: +20 moedas de ouro
Gajo da flor ganhou experiência: 10pt
Gajo da flor iniciou nova jornada: recuperar a lantejoula do capitão