quinta-feira, 31 de outubro de 2013
Gritando a plenos pulmões no meio da selva
Para quem ainda não viu a mini-série da National Geographic “Going Ape”, recomendo vivamente a perder umas horas. O programa de entretenimento, distante do clássico documentário da selva, no entanto a milhas do da futilidade dos actuais shows sobre fugas da prisão, maníacos da sobrevivência e outras tantas categorias que mancharam a reputação deste canal, juntamente com a grelha dos canais Discovery (que contempla o TLC), retracta as semelhanças entre o Homem moderno e os nossos primos afastados, símios como o bonobo e o chimpanzé. A conclusão a que eu cheguei é que, apesar de mais bem vestida e subtil, a nossa espécie continua com os hábitos de antigamente, uma necessidade visceral de se enquadrar na sociedade, de se afirmar e, se possível, ser dominante.
E depois existem aqueles que atiram a subtileza toda pela janela fora.
Quem ouve música alta (não como os idosos a ver telenovelas mas como um bar cujo dono quer que as pessoas se vão embora) com as janelas abertas no último dia de Outubro, nitidamente não tem problemas auditivos nem obtém prazer de ter os tímpanos a sangrar. O objectivo é claramente mostrar a toda a praceta que “eu existo, eu estou aqui e têm todos que me aturar”, um grito de guerra para quem não tem outra forma de afirmação. Mas , ao contrário dos portugueses de antigamente (retratados nas histórias dos mais velhos, eu nunca cheguei a conhecê-los), que quando a pobreza bateu à porta não foram todos assaltar bancos ou velhinhas, quando a vida está tão mal ou tão bem que existe uma necessidade de exercer dominância nos demais, uns quantos encontram formas de libertar essa energia abrindo a janela antes das 9 da manhã e metendo a música mais monocórdica e aborrecida que encontraram no seu iphone (porque hoje em dia toda a gente tem iphones, começo a desconfiar que os distribuem na fila da segurança social). Outros, uma casta já praticamente desconhecida da linha de Sintra, cometem as atrocidades pós-modernas como subir na vida, subindo na carreira ou crescendo um negócio próprio e conseguindo famílias estáveis e saudáveis onde as crianças são obrigadas a manter a música baixa.
(foto "emprestada" de http://adamsapple15.blogspot.pt/2009_12_01_archive.html )
domingo, 8 de setembro de 2013
10 medidas “fassistas” para combater a obesidade
sábado, 27 de julho de 2013
O padre que deixou de acreditar em Deus
Não há nada de científico na fé, quero dizer, ninguém tem fé em Deus (maiúscula por respeito aos amigos católicos) porque leram uma revisão sistemática ou uma meta-análise de estudos científicos publicadas em revistas conceituadas. Se um padre deixa de acreditar em Deus, apesar de caso grave e das possíveis consequências laborais, não podemos inferir que não volte a crer. Num aperto até um ateu ferrenho contempla a opção de rezar, mesmo que a ponha de lado no minuto seguinte.
O caso não é tão simples quando não falamos de uma religião mas numa corrente filosófica. Um homem crê numa certa linha de pensamento dada uma certa lógica, que quando quebrada não tem forma de se reconstruir. Se forem apresentados dados suficientemente convincentes e mais coerentes que os vigentes, pressupondo uma mentalidade que ainda não cristalizou, a probabilidade é baixa que o prevaricador volte ao mesmo caminho depois de o abandonar.
Exagere-se o caso e imagine-se que Freud era ressuscitado e deixava de acreditar em tudo o que disse anteriormente. Como faria ele para se divorciar da psicanálise? O que faria ele com os milhares de seguidores no mundo? O mais provável é que estes o chamassem de maluco, nem todas as mentes estão abertas à mudança, mesmo aquelas que o estão não trilharam o mesmo caminho que ele e como tal não tiveram tempo de atingir as mesmas conclusões ou de assimilá-las correctamente. Como se sentiria Freud no seu círculo de amigos psicanalistas? Um inimigo? Ostracizado?
Restam duas opções: a fraude ou a honestidade. Custa a crer que muitos padres e Freuds tivessem a coragem e sacrifício para virar as costas a tudo o que construíram.
Felizmente eu não sou Freud, não sou padre, não vou desapontar milhares de psicanalistas e não passei a ser satânico ou a acreditar na teoria dos humores.
Estou só à procura das palavras certas para a minha carta de meia despedida.
sábado, 6 de abril de 2013
O problema dos comediantes são as cascas de ovo no chão

quinta-feira, 14 de março de 2013
Erro médico
Chovia intensamente no estacionamento do hospital. Manolo olhou novamente para o relógio e suspirou. Há quinze minutos que se tentava recompor sem qualquer sucesso. Os seus membros jaziam como mortos na marquesa que tinha roubado no consultório. Duas poças formavam-se atrás das orelhas, lágrimas de culpa do que tinha feito. Sim, o dia já se tinha alongado infinitamente, as enfermeiras não paravam de o chatear e interromper com perguntas de doentes que aguardavam na sala de espera. Todo o sistema tinha falhado mas não compreendia a leveza como o podiam interromper enquanto ele tinha uma agulha nas costas da doente, penetrando até ao espaço subaracnoídeu.
Manolo arrastou as pernas para o lado, que tombaram desamparadamente, e numa tentativa de se levantar finalmente acabou com a face entre as coxas. Os pensamentos fugiam num frenesim de hora de ponta, ele tinha que se controlar. Respirou fundo e recapitulou os momentos anteriores. Tinha coberto o banco da sua nova colega, inimaginavelmente impreparado para dar cuidados de saúde numa instituição completamente desconhecida. Tinha tomado a doente dela para lhe administrar uma injecção intratecal. Tudo parecia ter corrido bem, os lotes correspondiam ao doente. Só segundos mais tarde se apercebeu que a seringa continha vincristina. Anos de estudo de medicina tinham-no preparado para um momento como este, sem falar sequer do internato de oncologia. E sem sequer levantar um mínimo de suspeita, o erro tinha sido cometido, pelas mãos dele. Roberta, de 27 anos, casada e com um filho, vítima do maior erro da sua carreira. A injecção intratecal de vincristina provocar-lhe-ia muito provavelmente a morte. Sem qualquer desculpa ele não tinha visto o rosto do processo, não tinha notado que ela era de Miranda do Douro. E foi ainda sentado e debruçado nas costas de Roberta que a enfermeira lhe fez notar a folha de rosto e nesse ponto ele conseguia rever a pior sensação da sua vida, como se o seu estômago tivesse sido arrancado pelas costas por uma goma de ursinho da Haribo®. Não tinha matado uma pessoa, tinha condenado um hospital inteiro… se os militares conseguissem impedir mais carnificina. Em poucos segundos Roberta tornou-se num réptil gigante, uma patada depois o mundo havia escurecido o que o trazia ao ponto em que havia ficado.
Limpou as lágrimas e levantou-se. O cenário era aterrador, como ficar numa festa preso a falar com uma pessoa que trouxe o iPad. O piso do gabinete, branco e frio, contrastava com o sangue e os corpos da enfermeira e do estagiário que o tinham acompanhado. Os seus corpos cortados em filetes lembravam as embalagens de bifes do supermercado, bonitos por cima, o lado negro, sangue e peças intragáveis por baixo. “Só falta a esponjinha”, pensou. Passando por cima deles saiu cautelosamente pelo buraco que outrora teria sido a porta, agora com o caixilho arrancado pela monstruosa cabeça da mirandaraptor. Nada na sua vida o tinha preparado para o que veria a seguir. O ar tornou-se irrespirável, um misto de areia e óleo Johnson. Cabos de rede faziam de cobras, escorregando pelas paredes e aterrando no chão e no corpo escamoso de Roberta. O sistema de apoio ao médico tinha sobreaquecido novamente e o ar condicionado, entupido em teias de aranha que as empregadas insistiam em deixar por pensar trazerem-lhes dinheiro e pseudomonas, não tinha sido suficiente. A sala de informática explodiu, num caos de figuras de anime, óculos de massa e respectivos informáticos, lubrificante barato e colecções pornográficas japonesas. A pobre e mortífera mirandaraptor tinha tido o segundo azar do dia ao passar no corredor no momento errado. Mas milhares de vidas foram assim poupados, além de todo o dinheiro necessário para mobilizar as forças armadas.
Anos mais tarde Manolo ainda se lembrava do caso, apesar de que agora substituíra a bata e estetoscópio por fato e gravata que usava como director e coçador profissional de micose. Todo o incidente lhe continuava a tirar noites de sono, noites perdidas a dar seminários a internos sobre como um erro do sistema informático (como constava nos relatórios oficiais) tinha custado a vida a uma doente, uma enfermeira e um interno, e como quase viu a sua vida perder-se frente à terrível e temível mirandaraptor.
Não cometam o mesmo erro que o Manolo. Exija que o seu consultório esteja afastado do departamento técnico de informática do seu hospital.