sábado, 19 de março de 2016

O dilema de Maria



O dia estava cinzento e corria uma brisa gelada quando a Maria se dirigiu à unidade de saúde do Estoril. Apesar do pesar que sentia no peito, sabia que a sua decisão era a mais correcta. Já sentia que algo de errado se passava com o seu filho Gonçalo há uns tempos. O seu desenvolvimento não estava a correr como esperado. Maria levou as mãos à barriga. O seu filho esperneava, como sempre.
Entre lábios semicerrados sussurrou, "em breve estarás calmo e tudo estará bem... vais descansar em paz"
Ordeiramente esperou pela sua vez, transpirando a senha na sua mão. A administrativa que a atendeu confirmou a sua consulta de saúde materna, não questionando mais, pressentindo que algo de errado se passava com este pequeno projecto de ser humano.
A consulta estava atrasada, estava sempre atrasada, mas eventualmente Maria foi chamada para o consultório da Dra. Joana. Esta, sempre muito amável, cumprimentou-a, fazendo uns minutos de conversa de circunstância, tentando quebrar o gelo. Mas a Maria mantinha o olhar soturno, até que a médica a questionou:
- O que se passa, dona Maria, parece que algo a está a preocupar.
Maria encheu o peito de ar e ganhou forças para verbalizar as suas angústias finalmente.
- Doutora, quero que me mande ao hospital para fazer um aborto.
A Dra. Joana tentou disfarçar mas os seus olhos tornaram-se redondos como azeitonas. Esta era uma situação com que nunca se tinha deparado, não era algo para o qual tivesse preparação. A formação para dar más notícias já era escassa, quanto mais a de recebê-las. Lembrando o seu treino em medicina geral e familiar, incitou a desenvolver a questão com uma pergunta aberta, "mas o que a leva a querer um aborto aos 13 anos de vida?"
- Eu noto que está algo de errado com o meu filho doutora, ele usa chapéus no topo da cabeça mas sem os colocar realmente, tem roupas desconexas, diz que não precisa da escola, só precisa de swag e que sai todos os dias com os amigos mas na verdade passa as tardes nos jogos online com eles. - maria não se conteve e começou a chorar silenciosamente, - ontem disse-me que quer ser jogador de futebol e que o wrestling é luta a sério. Custa-me muito isto doutora, mas percebo que ele tem uma malformação e que é preferível abortá-lo enquanto ele claramente não tem consciência do que deixá-lo crescer e deixá-lo vir a ter uma vida de sofrimento.
Por esta hora, o Gonçalo, que havia estado sentado na cadeira calmamente, empunhando o telemóvel e jogando Clash of Clans com o som no máximo, sem qualquer noção de etiqueta, começou a dar pontapés na secretária. A doutora perguntou-se se estaria a fazer treino de força para a sua brilhante carreira de futebolista. No entanto as suas capacidades de controle motor eram muito fracas, um claro défice neurológico. Não mostrava qualquer reacção aos estímulos verbais ou físicos quando Joana lhe tocava no ombro ou lhe pedia a opinião sobre o assunto que estava a ser tratado. Eram raras as mulheres que conseguiam seguir em frente com um aborto numa fase tão tardia da gestação, ela admirava a coragem desta mãe, sobretudo o humanismo de tentar poupar sofrimento ao filho, que nunca teria a capacidade de singrar na vida, nascendo a sua idade adulta para ficar permanentemente ligado ao suporte de vida da segurança social, nunca vindo a desenvolver meios para a sua autonomia.
Joana sorriu a Maria e disse:
- Compreendo os seus receios, é preferível agora, enquanto ele não tem qualquer consciência. Vou enviá-la novamente à maternidade, não devem tardar em contactá-la. Compreende a importância do seu pedido, terá ainda uns dias para pensar e acompanhamento psicológico. Não se esqueça de levar na consulta da maternidade o boletim de gravidez e o Gonçalo. O resto tratam eles.
A Maria acenou, sentindo-se ouvida, levantou-se e abraçou a sua médica. Não sentindo necessidade de prolongar excessivamente a consulta que já estava atrasada, não ofereceu resistência enquanto era dirigida à porta do consultório. Enquanto as duas mulheres trocavam o último olhar, Maria deixou Joana com uma questão retórica, - será que isto foi por eu ter visto tanto Big Brother durante a gravidez?
Anos mais tarde, o nome da doutora Joana era publicado na capa do New England Journal of Medicine como autora do estudo que relacionou a exposição repetida a reality-shows no 2º trimestre de gestação e as malformações neurológicas tardias do feto.

Sem comentários:

Enviar um comentário